O MAL-AMADO
Portugal | 1972 | 35mm | Preto e Branco | 99’
Realizador: Fernando Matos Silva
Cópia: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema
Sinopse: João, com cerca de vinte e cinco anos, decide abandonar os estudos, pouco antes de ir para a tropa. Soares, o pai, funcionário público zeloso, com influências e amizades, arranja-lhe um emprego transitório. Colocado numa secção de mulheres, marcando a sua situação de favor, a chefe, Inês, transfere para ele uma paixão frustrada pelo irmão, morto na guerra colonial, enquanto João começa a namorar Leonor, uma colega. Por mero acaso de ciúme, Inês acaba por abatê-lo com um tiro de pistola…
Foi proibido pela Censura e o seu negativo confiscado. Estreou depois do 25 de Abril, tendo conquistado o Prémio Imprensa/Cinema em 1974.
“O MAL AMADO ou a inquietação da juventude estudantil em vésperas do 25 de Abril. O desencanto da pequena burguesia e as suas oscilações ideológicas, na figura de um jovem que procura romper com a sua classe mas a ela volta sempre, tendo como cenário o bairro de Campo de Ourique. Proibido pela censura e só estreado depois do 25 de Abril, mais concretamente a 3 de maio.”
[Fonte: Cinemateca]
O Mal Amado possui um capital simbólico nada negligenciável: foi o último filme português a ser proibido pela censura, foi o primeiro filme português a ser estreado depois do 25 de Abril de 1974. Este simbolismo (advindo do facto de ser simultaneamente o último filme do “antes” e o primeiro do “depois”) colou-se-lhe à pele, mas é interessante voltar atrás (ou voltar “dentro”, ao interior do filme) e detectar em O Mal Amado alguns sinais que, vistos de hoje, parecem preparar o terreno para a chegada desse simbolismo. Porque de algum modo o filme de Matos Silva se parece “oferecer” a ele, denotando uma aguda consciência da inevitabilidade (e da iminência) da mudança, que se manifesta (ao contrário do que era habitual em filmes de “militância” e “anseio de revolução”) de forma quase passiva – e talvez isto, mais do que tudo, tenha irritado os censores: o retrato de um regime, ou mais amplamente de um “statu quo”, prestes a cair de podre à primeira brisa. Dir-se-ia que O Mal Amado tinha plena consciência de que, acontecesse o que acontecesse, estava a registar os últimos dias de uma época; e é para esse clima de antecipação, ou de espera, que Matos Silva nos convoca desde os planos iniciais, com as imagens dos relógios e, na banda sonora, o tique-taque que se prolonga pelos primeiros planos “narrativos”.
Esse espírito (de crónica “dos últimos dias” ou, se calhar melhor, de crónica “do tempo que falta”) explica muita coisa sobre o tom e as opções narrativas e formais do filme de Matos Silva. Por exemplo, a doçura com se assume como “filme de bairro” (sendo o bairro Campo de Ourique): já que se trata de viver a espera, há tempo para olhar para o lado, e procurar (e proclamar) um vínculo afectivo com os lugares – até porque Campo de Ourique é sempre alvo de uma atenção à sua materialidade de lugar, que transcende em muito qualquer hipotético estatuto de “amostra” ou “microcosmos” social.
Esse mesmo espírito explica, depois, por que razão todo o conteúdo directamente “revolucionário” surge algo mitigado e remetido para o espaço do teatro (a encenação “brechtiana” de Gil Vicente, provavelmente as cenas mais envelhecidas do filme) ou da representação (o discurso de João Mota, imitando os tiques vocais de Salazar, em frente da loja de electrodomésticos). Antes de procurar precipitar a revolução, interessa a Matos Silva fazer uma “pintura” do regime enquanto mundo estagnado, congelado e previsivelmente ordenado – que se manifesta tanto nos preciosismos da ordem familiar como nos da ordem “laboral” (a gravata e o corte de cabelo de João Mota antes de entrar ao trabalho no seu novo emprego). E aqui entra em cena a figura do pai, figura complexa porque Matos Silva resiste à sua maniqueização. É evidente que o pai é (e está no filme enquanto tal) o representante “doméstico” da ordem social, e que está destinado a funcionar como oposição à juventude da personagem de João Mota. Mas, em nome do espírito de inevitabilidade que marca o filme, Matos Silva pode filmar a personagem do pai menos como uma expressão do “mal” do que como um anacronismo – se João Mota não se reconhece no mundo em que vive, o pai, por sua vez, vai em breve deixar de se reconhecer, o seu mundo está a acabar. Também por isso, o filme adia, sem nunca o concretizar, o confronto pai/filho que parece sempre iminente: para além de ligeiras provocações de parte a parte, o filho submete-se, com uma paciência afectuosa, à ordem e às regras familiares; do mesmo modo, o pai tolera ao filho, com igualmente afectuosa condescendência, aquilo que para ele são as “manias subversivas” da juventude. O tratamento desta relação, que instrumentaliza o pai (ou seja, que o utiliza como suporte metafórico) sem lhe retirar a dignidade e a plenitude de personagem, talvez seja um dos aspectos mais ricos numa visão contemporânea de O Mal Amado, pois nela se joga o confronto entre o “velho” e o “novo”, entre o que “é” e o que “vai deixar de ser”, não deixando de ecoar todas as contradições forçosamente acarretadas por um olhar afectivo sobre as coisas.
Essa dimensão afectiva, em última análise, é hoje o que mais sobressai em O Mal Amado. Estão aqui os últimos dias do Estado Novo, mas também está uma espécie de nostalgia por um tempo de juventude em que o futuro era uma promessa impossível de não se cumprir. Daí que haja também uma rara impressão de liberdade (inclusive cinematográfica, com o improvável casamento de um naturalismo herdado da Nouvelle Vague com as influências colhidas em Brecht ou em Straub), só possível porque, como o princípio do filme mostra, Matos Silva sabia que o ponteiro estava quase a bater na hora certa.
Luís Miguel Oliveira
O Mal-Amado
O último filme português vítima da censura fascista
by Paulo Cunha
A três de Agosto de 1968, o ditador António Salazar sofreu um acidente e foi hospitalizado. Durante quase dois meses Portugal ficou suspenso, enquanto o regime vivia uma luta interna pela liderança do país. Marcelo Caetano, representante da suposta ala moderada do regime, foi escolhido para sucessor de Salazar e indigitado a 27 de Setembro seguinte. A sua proposta política, baptizada como “renovação na continuidade”, pretendia adaptar um regime ditatorial com quatro décadas de existência às inúmeras necessidades de uma sociedade portuguesa em permanente mutação sociológica.
Films and Finality – O Mal-Amado – O último filme português vítima da censura fascista
A prometida “abertura” do regime foi confundida por muitos portugueses como o prenúncio de um processo de democratização da sociedade portuguesa. Entre esses portugueses estavam muitos jovens cinéfilos e cineastas que, desde inícios da década, vinham promovendo uma renovação estética e técnica no cinema português. Convencidos de que a democratização era um processo irreversível, estes jovens passaram a trabalhar e a apresentar filmes com mensagens sociais e politicas mais arrojadas. Ao contrário das suas expectativas, o regime não os aceitou e proibiu a exibição de alguns desses trabalhos.
O Mal-Amado, primeira longa-metragem de um jovem cineasta chamado Fernando Matos Silva, foi um desses trabalhos e o último dos filmes portugueses que o regime marcelista proibiu. Ironicamente, seria o primeiro filme português a estrear nas salas nacionais após a Revolução de Abril de 1974.
Este breve texto tenta compreender por que razão o filme foi proibido, por que razão o seu autor pensou que não fosse censurado e por que razão foi o primeiro filme português a estrear no pós-Revolução.
Sobre a censura ao cinema em Portugal
Apesar da primeira legislação censória datar de 1917, com uma lei extraordinária a propósito da intervenção portuguesa na Primeira Guerra Mundial, e do primeiro código de orientação para os censores só ter sido publicado em 1927—em plena vigência de uma ditadura militar (1926-32)—foi no período inicial da ditadura do Estado Novo, enquanto António Ferro dirigiu o organismo de Propaganda e Informação estatal (SPN/SNI, 1933-49), que os principais mecanismos de controlo pela censura foram definidos: definição de um projecto de “cinema nacional” e de um grupo de cineastas colaboradores que o promoveram, incentivos financeiros a projectos seleccionados, regulação dos espectáculos por escalões etários (1939), criação dos prémios de cinema (1944), selecção dos filmes portugueses participantes em festivais de cinema internacionais, instituição de uma Comissão de Censura (1945) e a lei geral de protecção ao cinema nacional (1948). Com estes mecanismos, Ferro conseguiu controlar a produção e distribuição cinematográfica e adequá-la ao seu projecto cultural e educacional.
Durante este período de quase vinte anos, todo este investimento político na vigilância e controlo da produção teve resultados visíveis no cinema português. Devido ao estado precário e débil da indústria cinematográfica portuguesa, era quase impossível produzir cinema em Portugal sem o apoio financeiro do Estado. Esta condição permitia ao regime exercer uma censura económica e obrigava todos os produtores e realizadores que quisessem sobreviver a aceitar, sem contestação, e a submeterem-se às directivas sociais, políticas e morais emanadas pelo Estado Novo. Na área da distribuição a situação era semelhante. Pelas características frágeis do mercado distribuidor, o Estado obrigava as próprias empresas a exercer uma censura prévia à censura do regime.
Após a demissão de António Ferro, o sector cultural do Estado Novo conheceu um período de clara descaracterização ideológica. A saída de Ferro significou também a perda de influência e a fragmentação do núcleo de cineastas afectos ao poder. Na década de 50, vários factores concorreram para uma progressiva perda de controlo estatal sobre o cinema: criação da televisão pública (RTP), aumento da oposição cultural ao regime, crescimento do movimento cineclubista, crescente autonomização dos circuitos de produção e distribuição cinematográfica em Angola e Moçambique, acentuada influência do neo-realismo, entre outros. Como consequência, a acção da censura política intensifica-se e surgem os primeiros casos de censura repressiva significativa, desde proibições integrais de filmes, perseguição por parte da polícia política e prisão de alguns cinéfilos.
Um dos casos mais singulares da história do cinema português deste período é o do realizador Manuel Guimarães. Em poucos anos, com três longas-metragens, este promissor realizador tornou-se um inimigo para o regime e foi vítima impiedosa da acção da censura. Se as suas duas primeiras longas foram alvos de significativos cortes e repreensões por parte da comissão de censura—Saltimbancos (1951) e Nazaré (1952)—, a terceira, Vidas sem Rumo (1956), foi completamente desfigurada, tendo sido proibida cerca de 45 por cento da versão apresentada aos censores. Próximo dos sectores oposicionistas ao regime, sobretudo nos movimentos cineclubista e neo-realista, Guimarães foi perseguido política e ideologicamente pelos censores. As perdas financeiras acabariam por obrigar o realizador a optar por produções mais comerciais e ideologicamente mais inócuas.
Em 1958, Marcelo Caetano, então Ministro da Presidência, entregou a direcção do SNI a César Moreira Baptista, seu fiel político, que impôs um alento renovado ao organismo. A estratégia do novo responsável pela política cultural do regime seria recriar as condições de controlo estratégico da produção: concessão de bolsas de formação a uma nova geração de realizadores, aumento significativo da produção de filmes de formato reduzido, aposta na produção televisiva enquanto projecto de educação popular.
No entanto, a relação desta nova geração de realizadores com o poder político nunca foi estável ou de confiança. Dos realizadores envolvidos neste esforço de renovação estética do cinema português quase todos conheceram os rigores da censura: Manoel de Oliveira teve de acrescentar um final feliz à sua curta-metragem A Caça (1963) porque o SNI considerou a versão do realizador muito derrotista e pessimista; Paulo Rocha viu a censura cortar três cenas de Os Verdes Anos(1963); António de Macedo viu cortadas quatro cenas do filme Domingo à tarde (1965). Outros cinéfilos, mais politizados e fortemente hostis ao regime, como José Fonseca e Costa, foram mesmo detidos pela polícia política pelas suas ligações à oposição política clandestina.
Mas o caso mais mediático deste período foi Catembe. Primeira longa-metragem de Manuel Faria de Almeida que, apesar de ter recebido um subsídio à produção, seria sujeita a um número recorde de 103 cortes, grande parte deles sugeridos pela Agência Geral do Ultramar. Tinha uma metragem original de 2400m e ficou reduzido a 1200m, com apenas 48 minutos (Candeias 2003).
Os sectores de distribuição e exibição também constituíram um alvo particular da atenção do regime. Em 1952 é criada a primeira tabela de classificação etária, o que na prática permitia, mesmo aprovando um filme, condená-lo ao fracasso comercial e desencorajando ainda o importador a distribuir certo tipo de filmes indesejáveis ao regime. Para tentar minorar os riscos dos importadores, algumas distribuidoras internacionais vendiam os filmes “à condição”, ou seja, com a salvaguarda de a exibição do filme ser aprovada e autorizada pela censura.
As contradições da “primavera marcelista” e o caso O Mal-Amado
A nova geração de cinéfilos, fortemente influenciada pelos ventos de mudança vindos da Europa—Maio de 68, descolonização, processo de adesão à Comunidade Europeia, emancipação política e social das camadas juvenis—questiona abertamente, através da produção fílmica, as orientações políticas, ideológicas, sociais e culturais do regime. A queda—física e política—de Salazar e a nomeação do “moderado” Marcelo Caetano coincidiu com o processo de constituição do Centro Português de Cinema, cooperativa de produção que reunia os jovens renovadores cinéfilos e contava com o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
Espelhando este estado de “euforia”, alguns jovens cineastas trabalham em projectos que iriam sofrer a censura do regime: Quem espera por sapatos de defunto morre descalço (1970), de João César Monteiro, sofreu cortes da censura que inviabilizaram a distribuição comercial; Nem Amantes, Nem Amigos (1970), de Orlando Vitorino, foi proibido e só seria exibido pela primeira vez em Portugal em 1983, na Cinemateca Portuguesa (Matos-Cruz 1999: 143); Nojo aos Cães(1970), de António de Macedo, depois de ter participado no Festival de Cinema de Benalmadena (Espanha), foi proibido por ser considerado “perigoso e contrário aos interesses nacionais” (Macedo 2007: 28); Grande, grande era a cidade (1971), de Rogério Ceitil e Lauro António, foi interdito após ante-estreia no Festival de Santarém (Matos-Cruz 1999: 145); Índia (1972), de António Faria, foi proibido integralmente (Matos-Cruz 1999: 159); Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972), de Lopes Barbosa, um filme produzido em Moçambique falado em dialectos locais, foi proibido na íntegra (Matos-Cruz 1999: 149); Sofia e a Educação Sexual (1974), de Eduardo Geada, sofreu proibição integral (Matos-Cruz 1999: 155); O Mal-Amado (1974), de Fernando Matos Silva, apesar de ter sido seleccionado para o Festival de Bérgamo (Costa 1992: 24), foi proibido integralmente e o seu negativo foi confiscado (Matos-Cruz 1999: 154) .
Para além das proibições integrais, conhecem-se mais dois casos de filmes que, apesar de terem visto concluída a rodagem anos ou meses antes da revolução, foram preservados e não arriscaram sequer o visionamento do exame prévio: Fragmentos de um filme-esmola: A Sagrada Família (1973), de João César Monteiro, foi rodado entre 1972-73 mas estreado apenas em 1975 (Matos-Cruz 1999: 153); Os Brandos Costumes (1975), de Alberto Seixas Santos, foi rodado entre 1972-73, mas estreado apenas em 1975 (Matos-Cruz 1999: 156).
Contrariamente ao esperado por vários cinéfilos, esta aparente “abertura” do regime convive com um acentuar da repressão e da perseguição política nas vésperas da revolução. O fim da “ilusão marcelista” coincidiu com a estreia dos primeiros filmes produzidos pelo Centro Português de Cinema. O apoio financeiro da Fundação Gulbenkian deu à maioria dos cineastas da nova geração uma inédita autonomia necessária para arriscarem em projectos que não necessitavam da receita de bilheteira para se financiarem.
Escrito ao longo de dois anos por Fernando Matos Silva e Álvaro Guerra, O Mal-Amado narra a história de João Soares (João Mota), um jovem filho de uma família da pequena burguesia lisboeta simpatizante do regime que, mal sucedido nos estudos e em vésperas de ser chamado a cumprir o serviço militar obrigatório, se vê empurrado pela família para o primeiro emprego. Num escritório dominado por figuras femininas, João acaba por se envolver amorosament—primeiro com a chefe Inês (Maria João Guerra) e depois com a colega Leonor (Zita Duarte). No entanto, a relação entre João e Inês torna-se complexa e obsessiva uma vez que ela revê nele a imagem de um irmão morto na guerra. Não aceitando o fim da relação, o que ela considerava uma traição, Inês acaba por matar João.
Tal como a lei exigia, o filme foi submetido à Comissão de Censura quando se encontrava preparado para a estreia comercial. Datado de 14 de Fevereiro, o primeiro parecer dos censores Júlia Maury, Albino Fernandes, e Monteiro Fernandes sentenciava: “O tema, as motivações que o envolvem e a sua exploração intencional levantam graves problemas de ordem sócio-política que nos levam à reprovação do filme.” Precisamente um mês depois, o censor José Cabral reiterava a decisão anterior: “Filme iconoclasta, dissolvente e derrotista quer nos planos político e social quer nos planos moral e religioso cuja aprovação, por isso, não julgamos possível” (Processos de Censura a filmes, 1974).
No dia 21 de Março, Fernando Matos Silva, usando o seu direito de recurso, enviou uma extensa exposição à Comissão de Censura na tentativa de refutar as acusações e convencer os censores a autorizarem a exibição do filme. Ao longo de quatro pontos, o jovem cineasta argumenta o seguinte:
1. O Mal-Amado é um filme puramente autobiográfico, que se pode inserir numa corrente nova do cinema mundial e português, sem explorações intencionais. Filmes como “O Passado e o Presente”, o “Recado” e “Perdido por Cem…”, já autorizados e exibidos entre nós, sem cortes ou reprovações, são, paralelamente aoMal-Amado, filmes autobiográficos e tão negativos ou imorais quanto este filme é julgado ser. […]
2. O Mal-Amado é um filme inovador—esteticamente—dentro do ‘novo cinema português’. As buscas teóricas deste filme, inserem-se sempre dentro duma moderna corrente cinematográfica, em que a reflexão cinematográfica é o motor de todas as ideias fílmicas. […]
3. Porquê reprovar um filme que envolve um gasto perto dos Esc. 1.000.000$00 (um milhão de escudos) para o seu produtor. Quando o cinema português tanto precisa de dinamizar a produção, não será arriscado lançar reprovações sobre um trabalho que custou três anos aos seus autores e outros tantos à sua equipa? […]
4. O autor do filme não é nenhum destruidor de imagens, nenhum negativista ou derrotista. É um autor. Um artista que se insere nas modernas correntes estéticas de discussão social e política. É interveniente, mas pensa que o seu filme só intervém honesta e sinceramente na vida portuguesa.
(Processos de Censura a filmes, 1974).
No dia 28 de Março, a Comissão de Recursos “deliberou negar provimento ao recurso mantendo-se, portanto, a reprovação do filme.” Esgotados os mecanismos legais, realizador e produtor pareceram ter-se resignado à proibição de exibição.
Surpreendente para muitos, esta proibição não terá sido uma surpresa absoluta para o seu realizador. Em Outubro de 1973, em depoimento directo à revista Cinéfilo, Fernando Matos Silva deixava antever que o filme teria sérias dificuldades para que fosse autorizada a sua exibição pública: “Os filmes de Alain Tanner são exibidos em Portugal com alguns cortes de censura. Qual será a sorte dum filme como o meu Mal-Amado, que alguém disse—parecerem primos—entre si diferentes. Será este filme alguma vez exibido?” (Silva 1973: 9).
Analisando ponderadamente o vasto processo da Comissão de Censura relativo ao filme, haveria, na altura, três assuntos sensíveis que terão ditado o destino do filme: as cenas de suposto cariz erótico e sexual, uma cena de perseguição policial a estudantes e as referências directas e indirectas à guerra colonial.
Sobre as cenas de suposto cariz erótico e sexual, convém recordar que a matriz conservadora, católica e pudica do regime se consolidou ao longo de décadas e todos os comportamentos considerados desviantes eram social e moralmente condenados. A censura já tinha proibido diversas cenas envolvendo nudez (como os seios nus de Maria Cabral em O Cerco e de Guida Maria em A Promessa), prostitutas (Os verdes anos ou Perdido por cem…) e comportamentos sexuais considerados imorais (Domingo à tarde ou O Crime da Aldeia Velha).
A autoridade era outro valor absoluto e inquestionável para o regime. Mostrar, mesmo em narrativas ficcionais, comportamentos que não dignificassem autoridades públicas ou políticas era sancionado pelos censores. Foi o que aconteceu antes em filmes como Quem espera por sapatos de defuntos morre descalço, pelas referências ao Presidente da República, ou em Meus Amigos, por referências aos fuzileiros.
Quanto às referências à guerra colonial, não deixa de ser esclarecedor e significativo que, dos filmes proibidos integralmente durante a “primavera marcelista”, metade contenham referências directas ou indirectas à política colonial do regime: tanto Índia como Deixem-me… questionavam a ideia portuguesa de colonização exemplar, enquanto O Mal-Amado e Grande, Grande era a Cidade (1971) exploravam dois fait-divers relacionados com traumas resultantes da experiência colonial.
Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, a censura foi abolida e adoptado um novo critério para as classificações etárias, agora apenas guiado por finalidades pedagógicas. Nas principais salas de cinema de Lisboa estreiam clássicos proibidos (Battleship Potemkin, de Sergei Eisenstein, 1925;Roma, città aperta, de Roberto Rosselini, 1946), filmes malditos (Last Tango in Paris, de Bernardo Bertolucci, 1972; Clockwork Orange, de Stanley Kubrick, 1971) e os proibidíssimos filmes eróticos e pornográficos (Emmanuelle, de Just Jaeckin, 1974; Behind the Green Door, de James Mitchell e Artie Mitchell, 1972).
Nos primeiros dias de democracia, O Mal-Amado foi submetido à Comissão de Classificação Etária e, em relatório do dia 3 de Maio, foi classificado para o Grupo D da tabela de classificação etária, ou seja, teria exibição interdita aos espectadores com menos de 18 anos. Nesse mesmo dia, o filme estreou no Cinema Satélite em Lisboa com um slogan bastante apelativo: “O último filme português vítima da censura fascista”. No dia 7 de Junho, depois de algumas semanas em exibição comercial, o distribuidor do filme requereu à Comissão de Classificação Etária um pedido de reclassificação. Algumas semanas mais tarde, a 18 de Junho, o pedido foi deferido e o filme reclassificado: “Não aconselhável a menores de 13 anos por ser de leitura difícil ao grupo etário mediamente informado” (Processos de Censura a filmes, 1974).
Considerações finais
Na realidade, parece-me, as acusações e a interdição imposta pela censura ultrapassavam o próprio filme e os seus responsáveis directos. A proibição integral ao Mal-Amado aconteceu num momento de particular saturação e desorientação do regime face às arrojadas propostas estéticas e sociais de uma nova geração de cinéfilos inconformados com o status quo cultural e artístico português. A independência financeira na produção garantida pelo apoio da Fundação Calouste Gulbenkian ao Centro Português de Cinema, a pressão exercida durante a elaboração e discussão da nova legislação cinematográfica considerada progressista (famosa Lei 7/71), a reivindicação pela criação e controlo da escola superior de cinema e a posição hegemónica junto da crítica tornavam estes jovens cinéfilos em figuras social e politicamente incómodas.
A desconfiança generalizada por parte do regime era, por vezes, atenuada pela complexa teia de relações pessoais e institucionais entre elementos do Novo cinema e figuras de destaque do aparelho estatal e de várias instituições privadas parece fornecer inúmeras pistas para explicar várias questões aparentemente paradoxais e inexplicáveis. São hoje conhecidos diversos casos de negociações entre figuras do Novo cinema e funcionários do SNI/SEIT para permitir, por exemplo, estrear filmes com exibição interdita em Portugal em festivais estrangeiros (Nojo aos Cães) ou para rever alguns cortes impostos pela Comissão de Censura (Domingo à tarde).
Ao longo de 48 anos de ditadura, a censura, nas suas diferentes áreas de actuação (cinema, teatro, literatura, televisão, jornais), foi um dos instrumentos mais eficazes na consolidação de um regime vigilante e castrador. O Mal-Amado e Fernando Matos Silva foram apenas as últimas vítimas do regime fascista em Portugal.
Works cited:
Candeias, Rodrigo, 2003. Catembe: a “outra banda” de Lourenço Marques. Coimbra: Trabalho de seminário de licenciatura apreseado no Instituto de História e Teoria das Ideias da FLUC.
Costa, Camacho, 1992. ‘Os primeiros dias da revolução.’ Arte7 (Outono), p. 24.
Macedo, António de. 2007. Como se fazia cinema em Portugal. Inconfidências de um ex-praticante. Lisboa: Apenas Livros.
Matos-Cruz, José de, 1999. O Cais do Olhar: o cinema português de longa metragem e a ficção muda. Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
Processos de Censura a filmes, 1974. «O Mal-Amado», Fundo SNI-DGE, IGAC, 2.ª incorporação, cx. 467, proc. 240/74. Arquivo Nacional Torre do Tombo.
Silva, Fernando Matos, 1973. ‘A palavra (fim) no filme O Mal-Amado.’ Cinéfilo 3 (Outono), p. 9.